CONTRAPONTOS DESDE A PAISAGEM
Algumas das operações ligadas à arte contemporânea, particularmente aquelas de ações constitutivas que ativam desde a abordagem do corpo e a paisagem contemporânea, a natureza e os deslocamentos espaciais literais e os transmutados em redes sensoriais, a partir das metáforas construídas com procedimentos técnicos, definem o projeto de exposição do artista visual Evandro Angerami.
A paisagem aqui é abordada como múltiplos corpos - e vice-versa - que como receptáculos sensoriais se constroem nos contrapontos das imagens, nesse imperativo contemporâneo de vê-las e preservá-las da densidade irredutível da matéria e do enigma dos questionamentos do artista contemporâneo, e que entre outros discursos suscita alerta e preocupação pelo entorno e no contexto em que habitamos e, também, nos aspectos entre arte-natureza e arte-vida.
Angerami ao implantar operações de circularidade projetiva que transitam desde a des paisagem e ao invadir com corpos como receptáculos múltiplos, que se carregam e dialogam na mutabilidade das diferenças para a construção de manifestos visuais que vetam a tradição conceitual e espacial, propicia a construção de sólidos compêndios expandidos e assintomáticos da transitoriedade volúvel nos espectros sensoriais da arte contemporânea, não mais com afetos e sim desde diferentes contextos.
Assim sendo, aqui a paisagem se apresenta como um nervo vivo que se retorce em latentes vibrações; movimentos sensoriais que se implantam e se isolam num afastamento mutável das leituras plurais que agudiza.
Revelando o domínio técnico e a intensificação discursiva gradual dos emaranhados conceituais e/ou espaciais, o artista “contorciona” desde seus autorretratos, a literalidade interpretativa da predominância romântica do pictórico, por exemplo.
Assim, os registros fotográficos da série Paisagem-Viva, 2020, aqui como impressões digitais de um contexto natural invadido e adequado a uma cartografia pertinente se comportam como autorretratos de corpos múltiplos: o entorno registrado, o artista, o equipamento fotográfico. E mais, esses autorretratos disparam-se agora desde a residência/atelier de Angerami validando essa continuidade operacional transformadora da experiência particular e/ou coletiva e legitimadora da relevância da obra de arte e da imagem, ambas aqui como obras de arte: pinturas, instalações, vídeo instalações, impressões digitais, esculturas etc.
O artista articula um confronto sensorial ao deslocar do contexto o registrado (as impressões digitais, os vídeos do fogo e da fumaça) ou os materiais “reais” daquela cena ou cenas – como os tocos de madeira, as pedras e restos de demolição com desenhos neles ou diretamente nas paredes do espaço arquitetônico - na série Arquipélago, 2020 - , as pinturas e/ou a combinação deles, ou ainda os próprios deslocamentos espaciais e técnicos que o artista realiza para construir com eles novos cenários que invadem e alteram a realidade do espaço arquitetônico precedente de convívio e trabalho de um contexto doméstico agora em receptáculo expandido da ARTE. Inclui-se aqui, o discurso transgressor de Angerami como agente social ativo para aguçar com as ferramentas de um artista visual comprometido com um posicionamento crítico um alerta à preservação da natureza e dos seres humanos. Como pode-se observar seja na videoinstalação Jardim de Inverno, 2020 no jardim de inverno do espaço arquitetônico, seja nos Pássaros, 2020 no jardim do atelier ou na própria inserção dos tocos queimados no contexto natural como proto-colagens para trazer à tona, com a instalação Paisagem-Viva, 2020, uma reflexão sobre a necessidade da preservação da natureza.
Ativado o display, as modalidades e os agentes artísticos contemporâneos pelas variações absorventes dos discursos estéticos propostos, desde a verticalidade do espaço arquitetônico até os recortes visuais que se expandem para se misturar, se costurar e se irradiar, adirecionalmente, encontra-se como contrapontos estimuladores de uma mutável, tensionadora e potente instalação artística... em tempos de isolamento.
Andrés I. M. Hernández
Curador
São Paulo, Primavera, 2020
A POÉTICA DO SILÊNCIO
Por Oscar D’Ambrósio
Mario da Silva Brito, em seu Diálogo intemporal, aponta que “o homem moderno perdeu o prazer do silêncio”. Essa afirmação torna-se ainda mais instigante quando se pensa nas artes plásticas, pois não são poucos os que sempre esperam encontrar em pinturas e instalações uma visão explosiva e expressionista da realidade, tendo dificuldade em conviver com aqueles trabalhos que estimulam a interiorização do ser.
O artista que consegue passar para o seu trabalho um sentimento de silêncio e de ampla respiração vence um desafio. Constrói, por meio de recursos plásticos, uma criação que transmite um sentimento de vazio existencial, que se preenche no momento em que o quadro é observado, revelando um processo de amadurecimento visual e um domínio na conjugação de diversas imagens.
As telas de Evandro Angerami atingem justamente esse diálogo com o silêncio graças à habilidade de trabalhar com espaços amplos, em que a terra e o céu se articulam de modo a combinar-se numa espécie de paisagem que estimula a reflexão e propicia a passagem para uma nova dimensão.
O resultado alcançado é a cristalização de um processo de construção da própria obra que passa por um progressivo mergulho no universo de valorização da técnica, dos materiais e da imagem como procedimento artístico e existencial.
Angerami estabelece um reino de imagens de praias vazias de pessoas, nas quais a areia dialoga com alguma vegetação e com o céu, muitas vezes pontuado por estrelas que, em branco ou revelando o próprio fundo da tela, criam atmosferas de observação e harmônico equilíbrio.
No segundo ato do Conto de Inverno, Shakespeare escreveu que “Onde, por vezes, a palavra falha/ O silêncio da pura inocência convence”. A obra de Evandro Angerami obtém esse resultado. Sua busca pela poética do silêncio e pela estética da respiração mais pura possível recupera, em cada tela, o prazer de criar e de estimular o espectador a se debruçar sobre os próprios valores, questionando o que significam a arte e a vida.
Para isso, o silêncio que as suas telas geram no ato da contemplação constituem um sutil ensinamento: o de que a grande arte não precisa de barulho para ser criada ou vista, sendo, quando sincera, geralmente, o resultado de uma falta de ruído, existente entre o antes e o após do processo criativo.
Quando é resultado dessa respiração que o pintor dá a si mesmo, os trabalhos que se contemplam de um artista, como é o caso das imagens de Angerami, não têm só qualidade, mas o lirismo daquilo que o artista consegue fazer com a sua sensibilidade, cada vez mais aprimorada somada aos recursos técnicos aprendidos ao longo da carreira.
CÉUS DE TEMPESTADE
Doralina R. Carvalho e Paulo Gallina.
“Ela cria a partir do nosso ecossistema um mundo novo, cujos processos e objetos nos são tão absolutamente estranhos – um mundo que funciona por meio de ações radicais de espelhamento, e permanece oculto de tantas outras maneiras, sem entregar os fundamentos de sua alteridade quando se torna aquilo com que se defronta. (...) Imagine que essa comunicação às vezes confere um senso de estranheza à paisagem devido ao narcisismo de nosso olhar humano, mas que isso é apenas uma parte do mundo natural aqui. (...) Nossos instrumentos são inúteis; nossa metodologia, defeituosa; nossas motivações, egoístas”. Jeff Vandermeer
Contra o céu de concreto de demolição avulta-se uma montanha. Ao olhar atento, não obstante, a silhueta lembra e é humana. O delicado traçado subverte tanto o gênero do retrato – de imagens de ou com o(s) ser(es) humano(s) – quanto o gênero da paisagem – de imagens da natureza, intocada ou não pela humanidade. Paredões escarpados, platôs intermediários ou planícies subindo para as alturas dentro de vultos humanos, construídos por linhas paralelas por pequenos espaços sobre a matéria dura do concreto: alegorias para o ato de se observar ou do próprio hábito de respirar?
As linhas nem sempre precisam dar forma a palavras para participarem da comunicação. Enquanto, nas Paisagens humanas de Evandro Angerami, as linhas do desenho tornam indivíduos feitos de carne, osso e sonhos em duras montanhas vistas contra o que se supõe serem os céus. Onde estão, afinal, as montanhas? No olho que observa ou na construção a partir dos vultos? Trabalhando pedras de concreto com desenhos e sutis intervenções em ouro, o artista reconstrói uma espécie de memória ancestral grudada nas vivencias. Uma memória, como qualquer outra, construída por um conjunto de tentativas e erros, dores e alegrias, potências e aceitações irreconciliáveis.
Tratando os viventes como uma pequena partícula capaz de conter a força que elevou as montanhas até o limiar das nuvens, Angerami relembra ao público que, por sermos humanos – pequenos e insignificantes –; diante da incomensurável imensidão do universo, ainda somos capazes de aspirar um equilíbrio entre nossas vontades e confortos e um bem estar comunal dividido entre as todas as criaturas vivendo abaixo do céu.
O artista transmuta seus/suas modelos em uma parte inegável da natureza, uma linha filosófica abandonada há muito no conjunto ocidental do mundo. Como se procurasse lembrar aqueles que o interpelam de que se as cidades e estradas podem ser antinaturais; os corpos das gentes, porém, são inescapavelmente parte da natureza. Talvez por isso, inclusive, desenhos sobre concreto e pedra não bastem ao conjunto da instalação.
Que por mais artificias que sejam os modos de vida contemporâneos, os seres humanos nunca escapam da matéria que compõe a natureza. Porque, afinal, seres humanos são seus corpos e não aquilo que os habita. Assim, este projeto nega o uso do pronome possessivo de um indivíduo para com seu corpo, quase que afirmando: “eu sou o corpo, este corpo não é meu para ser habitado”.
Para apresentar completamente seu argumento, somam-se também dos desenhos, sobre testes de impressão, do artista. Pena sobre papel reconstruindo animais com linha e sonho. Afinal, quem pode negar que “nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono ”? Animais que muito bem poderiam ser a personificação das gentes em arquétipos ou autoimagens impressas em matéria. Como se fosse possível, um ser metamorfosear-se naquilo que ele imagina ser seu espelho, Evandro cria pássaros e toda sorte de animais marítimos.
Por fim, no conjunto da instalação, o vídeo Paisagens humanas (2019), com seus quatro ou cinco cortes secos separando cenas corriqueiras de uma obra filmada em planos-sequência. Representações alegóricas da trivial paisagem urbana metropolitana construída pela ação humana inventiva aplicada pela habilidade, tomada por banal, nas mãos de pedreiros-artífices. Terminando, finalmente, com uma mirada aos céus de tempestade de um dia particularmente turbulento do ano de 2019 quando os habitantes da Paulicéia desvairada , em uma tarde qualquer, viram o dia tornar-se noite, supostamente, por conta da somatória de nuvens de tormenta com as nuvens negras das queimadas da Amazônia.
O MUNDO DESCARNADO
por Paulo Gallina
O pintor paulista Evandro Angerami pinta corpos sem peso. Montanhas inteiras formadas pela matéria das nuvens, um tipo de vista que só poderia existir em uma pintura. A distorção da mirada, porém, serve a um arco de pesquisa como a pontuação serve ao texto.
No inicio de sua pesquisa, Evandro afirmava buscar, através de suas imagens, o silêncio dos dias. Um contraponto, talvez, à agitação cotidiana dos dias que correm. Da natureza, o pintor extraia a paisagem. O céu, o mar ou a ampla visão de campos eram retratados em tinta sobre tela. A paisagem contemplativa, somada à pesquisa de uma visualidade também contemplativa , demonstram o interesse do pintor por uma qualidade fugidia: a presença.
Estar presente no mundo significa deparar-se com o diverso: relacionar-se com o que lhe é alheio. Da presença, decorre a qualidade do que se consegue apreender do entorno. As pinturas de Evandro, pouco a pouco, passaram a comunicar-se com seus observadores por detalhes. Técnicas, novas e velhas, reinventadas para falar do que preenche a humanidade de cada corpo.
Certa espiritualidade está implicada neste corpo de pesquisa etéreo sobre a relação tátil entre as gentes e(m) seu entorno. Assim, o que antes era paisagem, tornou-se um corpo abstrato de cores em relação compositiva. Como se o artista já não mais procurasse retrarar aquilo que é visível, Evandro Angerami passou a tratar a pintura pelo que ela é: relação entre cores e formas.
Sem negar a matéria do mundo, mas partindo dela, o pintor incorporou a seus materiais a folha de ouro. O brilho do metal precioso, interage dentro da composição e, mais, torna telúrico o que antes explorava uma sensação amorfa a procura de corpo no mundo. Talvez uma outra forma de colocar esta pesquisa seja assim:
Como coloca o filósofo austríaco Ludwigg Wittgenstein, a comunicação humana é grandemente enunciativa. Isso implica que tudo o que se pode apontar objetivamente, consegue ser contemplado com facilidade pela cifra da linguagem – que habilita a comunicação. Porém, deste método também decorre o problema: como ter qualquer grau de certeza de que duas pessoas se referem à mesma coisa quando estamos tratando daquilo que não pode ser apontado? Porque cada um sente o amor, o ódio ou a esperança, isolado dentro de sua pele. Como enunciar aquilo que não se pode mostrar? Parece ser neste pequeno canto cego da comunicação que Evandro Angerami trabalha, procurando clareza em objetos de mirada obtusa.
Assim como o veneziano Ticiano Vecellio, Evandro Angerami busca na visão a capacidade de apreender- se da matéria dura do mundo o que quer que seja que anima as coisas ao movimento. A leveza das paisagens, assim, reflete sobre a relação entre a vontade dos sujeitos que olham para habitar os céus pintados e as montanhas sem corpo.
Quase como se o artista visse na presença diante de suas telas uma indicação sobre a vontade que não está limitada pela biologia. Afinal, o cânone materialista das ciências humanas modernas não leva em consideração a presença ou possibilidade de presença de um espírito. Assim Como o pintor veneziano, Evandro Angerami busca nos corpos, aquilo que os torna vivos.
Por que se movem os corpos? Para responder esta pergunta que pode soar tola, Evandro Angerami empodera-se com a responsabilidade de mostrar que a vontade humana, quando imersa na natureza se torna parte de um movimento maior, enquanto quando imersa na cultura ela é potencializada.
É esta a vontade deste projeto de exposição, revelar aos seus visitantes que o exercício de se tornar humano não é individual, mas coletivo. Afinal, como diz o escritor português Valter Hugo Mãe em seu texto a desumanização :
“- Tua humanidade não está contida exatamente em ti, Halla.”
SOLARES TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS
Por Doralina Rodrigues Carvalho
Tomado por uma condição de imanência, o artista Evandro Angerami parece conceber o seu trabalho como um processo de produção da vida em sua potência absoluta. A existência de sua pintura configura-se como expressão da existência do mundo.
A natureza é a fonte de inspiração para sua obra artística, na qual entrecruzam-se os céus, o sol, a lua, o mar, montanhas, animais em uma representação quase pictográfica daquilo que via e pintava ao ar livre: à beira mar ou aos pés de uma montanha.
Ao ar livre, Angerami também pinta com crianças criando juntos, harmoniosamente, paisagens incomuns. Surpreendentes e belos murais! Esteve também em comunidades indígenas, onde criou oficinas com a participação de adultos e crianças. Como diria P.H. Lawrence: “Talvez, se começando direito, todas as crianças possam crescer solares e aristocratas-sol”.
Deu-se, então, um lúcido e convincente encontro realista entre o artista e as paisagens geográficas que se cristalizaram em belos territórios identitários. Naquele período de intensa produção artística, Evandro Angerami aproxima-se mais uma vez de Lawrence, quando este afirma que o sol nunca se tornará decadente, nem a terra estéril. Lawrence sempre considerou o sol a fonte da vida, a afirmação da vida. Angerami acreditou no sol, na terra, na vida. Neste período estruturaram-se em sua pintura belas paisagens realistas.
Mas, os ofuscantes raios luminosos que animavam suas pinturas em travessias permanentes – entre um ocaso e outro – arrefeceram-se por um breve instante. Angerami se sentiu invadido por certa tristeza pelo que se passava no mundo, em seu país e nas relações sociais. Logo, esta condição subjetiva se transmuta em puro acontecimento. Seu devir artista desliza sobre aquela condição emaranhada e instaura outra condição de criatividade que se revela na exposição “Náufrago de mim”. Fez-se um momento belo, porém denso, em sua carreira artística para, a seguir, desdobrar-se em paisagens subjetivas libertas da exaltação do realismo enquanto reprodução do que se oferecia a seu olhar.
Em um intrincamento sem fronteiras entre o interno e o externo, cravejado de mutações pictóricas e por mistérios lunares entrecortando um ser/não-ser agudo e trágico, seu trabalho parece clamar pelo surgimento de um novo mundo em suas pinturas. Deixa fluir uma abordagem subjetiva e social cósmica, que liberta e desobriga sua pintura das predeterminações de imagens representativas e as remete a processos conceituais inundados por afecções e percepções singulares. Surgem os “Territórios existenciais”.
Em Angerami, a arte e a subjetividade entram em relação de ressonância mútua e, em combinações visuais inusitadas, esta exposição nos contempla com uma série de pinturas imaginárias e solares, ofertadas para um público que, esperamos, possa se agrupar, como diria Lawrence, numa nova ordem de homens-sol e mulheres-sol, livres e iluminados.